FOTOGRAFIA PARA UMBANDA: “A UMBANDA É UNIÃO”

- A comunidade ia chegando devagar, buscando onde sentar, assentando o silêncio nos sussurros do terreiro. Umbandistas saíam de dentro da casa, alguns com trajes brancos, outros com cores que expressavam as entidades, elevando as boas-vindas. No início eram três, depois vieram mais quatro, agora eram mais de sete corpos encantados formando de pouco em pouco uma roda e, em seguida, gira. Abrindo as mãos, revelando batuques, defumando a construção; da gira de Exu até a gira de Erês, os cantos se misturam ao som do coração, que se confunde com o tambor; os cheiros se misturam ao ar das palmas. Olhos ávidos - às vezes sonolentos, às vezes exauridos - presenciam a espera. Esperar é um ato importante na Umbanda.

             Belo Horizonte, Minas Gerais. A descrição se fez em uma noite de Exu e reaparece como fotografias na memória. É uma descrição única, tal qual o terreiro visitado e sua forma de existência; e assim serão as séries fotográficas apresentadas por Rogério Argolo compondo uma década de história imagética de parte da Umbanda vivente na capital mineira e região metropolitana.
            São apresentadas fotos de dezesseis locais que se autodenominam terreiros, cabanas, centros, casas, tendas, templos ou fraternidades, que se dividem nas regiões centro-sul, noroeste, leste e venda nova de Belo Horizonte. Em um mapeamento realizado em 2010 listou-se 353 espaços de Comunidades Tradicionais de Terreiro, na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Destas, ao menos 75 são de Umbanda, número expressivo e que afeta a dinâmica da cidade, afinal, como destaca Maria de Lourdes Siqueira, esses lugares “são lugares de saberes, centros de aprendizagem, ou seja, espaços de cultura e tradição.”, onde observamos, por exemplo, o conhecimentos sobre plantas, a politização perante a dimensão do racismo e estigmas que pairam sobre a cultura afro, dentre outras ações comunitárias desenvolvidas direta e indiretamente a partir das pessoas envolvidas. Nesses espaços, marcados pela solidariedade social, há ações que destinam-se ao cuidado e cura e, nesse momento, Rogério Argolo encontrou também a manifestação religiosa permeada pela combinação de vários elementos do catolicismo, do espiritismo e das práticas afro-indígenas brasileiras.
             Acompanharemos dois feitos importantes nessa imersão visual: a trajetória de um fotógrafo no seu interesse inaugural pela fotografia e aperfeiçoamento ao longo dos anos; e a transmissão histórica, até então tímida, relacionada ao registro das Umbandas. Tem-se um resgate imagético-social orientador de possíveis estudos presentes e futuros, a importante trajetória de uma década de manifestações onde a maioria resiste ao tempo e com o tempo.
             As fotografias realizadas por Argolo, divididas em quatro séries que colocam a técnica a serviço da apresentação do que pode ser a Umbanda, serão entendidas como “algo que está além ou aquém do registro feito por um dispositivo óptico (...); imagem como algo que você constrói.”(CHIKAOKA, 2015)3, entendendo que antes de ser captada, há uma memória sobre a imagem que vem do campo sensorial. Isso se explica assimilando que antes da máquina fotográfica, estão os seres e toda sua carga verdadeiramente íntima e social. E que carga íntima e social levaria um fotógrafo como Argolo a registrar uma religião tão específica? Qual a carga verdadeiramente íntima e social dos frequentadores da Umbanda a ponto de rejeitarem ser fotografados, em um primeiro momento, temendo transtornos visto o imaginário social construído sobre seus ritos? Deixemos aos nossos olhos uma busca por tais explicações.
            Há dez anos atrás, eram escassos as divulgações de registros sobre os ritos da Umbanda e também a discussão em torno deles, ao longo deste trabalho foram desenvolvidos dezessete fotolivros entregues aos terreiros registrados. Atualmente já temos podcasts, perfis de redes sociais e grande literatura sobre ela e, automaticamente, inscrições imagéticas de variadas técnicas que a façam ser vista e reconhecida, além de políticas públicas na esfera municipal, estadual e federal que são instrumentos de proteção e legitimação das feituras afro diaspóricas dentro das religiões. Contudo, a luz, o movimento... vem antes da fotografia. O fogo, a dança... vem antes da Umbanda. Eis que se encontram: o antes e o agora.
            O marco oficializado para comemorar a controversa história da Umbanda, o dia 15 de novembro, que remonta o ocorrido em 1908, no interior do estado do Rio de Janeiro4, está a apenas onze anos da deflagração da religião em Belo Horizonte. A origem das Umbandas ainda é fator de pesquisas, mas na capital sua primeira manifestação, até então expressa, é de 1933.
             Morais (2010) afirma que o registro do terreiro de Umbanda mais antigo da cidade data de 1933, o Centro Espírita São Sebastião. O terreiro, que ficava no bairro Santa Tereza e era liderado pelo Senhor Marcelino, foi dado como herança para a médium Dona Maria Cassimira (1906-1983), mudando sua sede para o bairro Concórdia, onde Maria morava. Lá, em 1994, a líder espiritual fundou a Guarda Moçambique Treze de Maio de Nossa Senhora do Rosário. Bairros como Santa Tereza, Concórdia, Sagrada Família, Graça, Lagoinha são apontados pela historiografia como bairros operários e periféricos em relação ao centro da cidade limitado pela Avenida do Contorno e é justamente essa região que abarca o maior número de terreiros afro religiosos e centros espíritas da capital, (...).(FRANÇA, 2022)5
             Nesta busca de uma datação ou definição do que seria a Umbanda, encontra-se a infinitude das possibilidades da fé em construção que a conduz para o plural. Arriscando a interpretar essa multiplicidade como a própria liberdade, acionada pela redescoberta do que significa ser e crer sem fronteiras, sempre em movimento, afinal, resulta da mistura de elementos e práticas.
              Portanto é importante, pela conjuntura da reunião de fotos aqui expostas, que se tenha ciência da emissão de um recorte de olhar, vivência e seleção para um fim, e que no tocante à responsabilidade curatorial, não se generalize a determinação da Umbanda… ou Umbandas. Nas fotografias se identifica o comum na cor das roupagens brancas e alguns acessórios de uso sagrado. Também o incomum nas variações arquitetônicas e no manejo dos símbolos e objetos e, mesmo na captura de um momento, imediatamente temos a sensação da diferenciação entre as cerimônias. Tudo isso com a convicção do que uma entidade explicou na noite de Exu, a mesma descrita no início deste texto: “A umbanda é união.”
               Essas seleções de fotografias são convites. Convidam-nos a ultrapassar a superfície visível, a perceber o que está implícito, escondido nas dobras dos turbantes, nas bocas semicerradas, nos gestos suspensos. Convidam-nos a questionar: o que mais habita essa pluralidade de Umbandas? Qual história murmura entre as imagens, naquilo que foge aos olhos, no invisível? Aqui, deixamos a superfície e, com curiosidade, somos chamados a sentir o que escapa, o que pulsa, o que permanece entre um gesto e o próximo – a reverência, a ancestralidade, a constante renovação do mistério.
Texto: Flaviana Lasan
Relação dos Terreiros Documentados no Município de Belo Horizonte 2014/2024
Tenda Espirita Mae Pomba
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Cabana Espírita Umbandista Caboclo Quinta da Serra
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Templo de Umbanda Hermética - - Filial Portal da Luz
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Tenda Umbanda Oriental Pai Rei Congo
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Centro de Umbanda Nana e Yemanja
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Casa de Caridade Pai Jacob do Oriente
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Fraternidade Kayman
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Fraternidade Espírita Irmão Rafael
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Centro Espirita Pai Benedito
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Centro Espírita São Sebastião
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Templo Escola Ogum Sete Espadas
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Mãe D’água
Mãe D’água
Centro Espírita Umbandista Senhora Aparecida
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Terreiro de Umbanda Mãe Sabina de Aruanda
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Casa de Cura
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Casa do Divino Espírito Santo das Almas
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